Água limpa e teto seguro
Enquanto o poder público aguarda decisão de processo judicial, cerca de 260 famílias de área invadida no Parque das Rodovias sonham com o básico para ter motivos para sorrir
Francisco Assis
Lucas Barbosa
Miguel de Sá
Os pequenos Leonardo e Eduardo brincam em frente à uma casa de paredes improvisadas, em uma castigada rua “cortada” por um filete de água de um cheiro nada agradável. Aos quatro e cinco anos, respectivamente, os meninos sorriem ao ver uma câmera fotográfica, enquanto ainda não entendem as dificuldades da família, uma das mais de 260 que vivem em uma área privada, invadida no Parque das Rodovias, em Lorena, há 13 anos. Sem água, esgoto tratado, e com um futuro incerto, eles esperam o desenrolar de um processo administrativo de mais de uma década para a regularização dos terrenos.
Uma caminhada de quarenta minutos pelo bairro é o bastante para conhecer as mais variadas histórias de pessoas de credo, raça, idade e origem variadas, mas com uma preocupação em comum, o medo de ficar sem um teto. Nas ruas esburacadas, crianças brincam com cachorros, próximos a lixo, esgoto e até mesmo a flagrantes de larvas de mosquitos.
“É claro que a gente queria um lugar melhor, mas isso é o que nós conseguimos. É o que a gente tem pra viver”, lamentou a coletora de reciclagem, Maria José da Conceição, 53 anos, avó de Leonardo e Eduardo. A família mora em um barraco, com espaço reservado para novos cômodos, trabalho que já foi iniciado, mas que também mostra precariedade devido ao solo irregular. Maria José contou que quando chove, sua casa fica alagada, colocando em risco a saúde de seus três netos. “Quando dá tempestade, a água da chuva mistura com o esgoto e entra no meu barraco. Para os políticos, a vida é fácil, eles não sabem o que é você ter que ficar numa cama com seus netos porque se você descer tem o risco da água contaminada te deixar doente”.
A cena da família ilhada em uma cama, espelha a realidade na comunidade. Quem mora no espaço, próximo à rodovia Presidente Dutra, ainda não tem atendimentos básicos. Até fevereiro, as famílias contavam com caixas d’água abastecidas por caminhões pipas da Sabesp, semanalmente.
A instalação de um sistema para o tratamento de água e esgoto é impossibilitada pela condição irregular do local. Em 2012, sete anos depois das primeiras invasões, o então governo de Paulo César Neme (PSC) firmou um acordo com a Tecelagem Diamantina, proprietária do terreno, para a compra da área, mas apenas a primeira parcela, de R$ 200 mil, foi quitada. O valor total era de R$ 2,5 milhões. Já no ano seguinte, o primeiro de Fábio Marcondes (PSDB) como prefeito, o processo teve de ser paralisado. O motivo foi a falta de inclusão da dívida no orçamento daquele ano, impossibilitando o pagamento das parcelas.
Em 2014, Marcondes entrou em acordo com os proprietários para a abertura de um processo de desapropriação da área, que ainda segue sem conclusão na Justiça. “Foi nomeado um perito, que fez uma avaliação que a Prefeitura não concorda. Ele não levou em consideração o problema social e o desordenamento urbano daquele local. Existem os quesitos de contrariedade ao processo. Nós fizemos e está na Justiça, mas não avançou muito. Peticionamos na ação, que o proprietário da área venha numa audiência de conciliação, já que o preço da área é muito exorbitante”, explicou o prefeito.
A reclamação por parte do Município se baseia na forma como a perícia foi realizada, segundo Marcondes “de forma per capita (terreno por terreno)”. Com a contradição, a Prefeitura não apresentou nenhuma contraproposta. Após o processo de desapropriação, o plano é buscar a regularização fundiária.
De acordo com o Município, o loteamento é legal e regular. “A ocupação que foi irregular. O que a gente discute, se não me engano, são 114 lotes que estão na ação”, destacou o prefeito, que soube pela reportagem do Jornal Atos que os 114 lotes da última avaliação, que contavam 132 famílias, tiveram um salto. Em avaliação dos próprios habitantes, após abaixo-assinado, a área já teria 260 famílias.
O crescimento populacional teria sido impulsionado por pessoas de outras cidades como Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Larvinhas, São Paulo e Sul de Minas.
Enquanto espera pela regularização, os moradores convivem com preocupações do dia a dia. Situações corriqueiras, se transformam em verdadeiras missões. Esse é o caso do ajudante geral, Wellington da Silva, 39 anos. Há quatro anos ele mora na rua Subtenente Pedro de Oliveira, uma via com canaletas para evitar o acúmulo da água da chuva e do esgoto, mas o sistema não tem dado resultado. Uma cacimba, abaixo de sua janela, não foi o bastante para evitar que os dejetos transbordassem.
O mau cheiro virou companhia do dia a dia. “A minha fossa transborda muito esgoto quando chove. Tenho medo das minhas crianças serem contaminadas por alguma doença”.
Mas esse não é o único obstáculo do cotidiano de Wellington. Viúvo, ele descreveu as dificuldades que enfrenta diariamente ao cuidar sozinho de seus quatro filhos, um deles, um jovem com deficiência mental, que precisa de atendimento no Centro de Saúde da cidade. Tímido, o pai contou que em boa parte dos casos não consegue a ambulância, e precisa colocar o jovem em uma bicicleta para levá-lo até o Centro da cidade. “É difícil, porque ele não é mais pequeno. Mas a gente precisa de ajuda, né? Nesses dias não dá nem para trabalhar”.
Vizinha a Wellington, a dona de casa, Helena Maria Vicente viveu 8 dos seus 64 anos, na área invadida. Além dela, dividem uma pequena casa o marido, de 73 anos, sua filha, o genro e duas crianças, uma delas, o pequeno Michael Henrique, de dois anos, que teve dengue em março. “É porque tem essa água que fica acumulando”, lembrou Helena, que contou ter problemas para fazer grandes caminhadas, mas que enfrenta uma longa distância para utilizar um poço artesiano, inaugurado em março.
“A gente vai até lá, porque já teve vez que tive que usar água suja para as nossas necessidades básicas. Mas o problema é que ele fica lá do outro lado do bairro. Ajudou o povo que mora lá, a gente, que mora na parte de baixo, ficou na mesma. Por causa desse poço, a Sabesp parou de colocar água nas outras duas caixas d’águas do bairro”, criticou.
O poço foi inaugurado após uma ação, que teria envolvido empresários e vereadores da cidade. Em vídeo publicado no YouTube, Elcio Vieira, o Elcinho (PV) explicou a ação. “Hoje, essas casas que não tinham água, agora tem. Estamos amenizando essa situação, com uma água de qualidade. Foi uma ação entre amigos, empresários que com essa ajuda conseguimos custear esse poço para a população”.
Mas a implantação do poço não agradou a todos. Há quem usa desconfiado das condições da água. Nascida em Cubatão – SP, a ajudante de cozinha, Francisca de Fátima Linhares, 57 anos, mudou-se há oito anos para a Rua 4, no Parque das Rodovias. Ela disse que se vê obrigada a usar do poço, que fica distante e em uma região com pouca iluminação, principalmente após o susto que teve com o filho, o menino Marcos, de 11 anos, que ficou doente após beber de água sem tratamento. “Foi muito triste ver o meu filho assim. O cabelo dele caiu e o médico disse que era por causa da água. Nós aqui não temos acompanhamento de ninguém, é como se fôssemos invisíveis”.
De acordo com o prefeito, uma equipe técnica deve fazer uma vistoria para avaliar as condições de uso da água do poço. “Este poço está totalmente em situação irregular. Foi muito irresponsável esta atitude. O poço não tem outorga”, frisou Marcondes, que ainda não pode avaliar a condição do solo. “Em questão de contaminação do solo, não dá para fazermos alguma análise numa coisa que está sob litígio judicial. Essa avaliação do solo será feita somente no momento após a regularização fundiária”, explicou.
Com o poço, o fornecimento de água pela Sabesp, com duas caixas d’água instaladas na região alta da área, foi interrompido. De acordo com o representante da Sabesp de Lorena, Dantes Carvalho, o atendimento foi suspenso devido à implantação do poço artesiano. Com a avaliação das condições do poço, Carvalho revelou que a Sabesp voltará a levar água para os pontos de armazenamento, com um abastecimento previsto de seis em seis dias, mas destacou que não é de responsabilidade da Companhia realizar as limpezas nas caixas d’água que atendem à população. “Isso cabe à Prefeitura realizar o serviço”.
Sem uso, a caixa d’água disponibilizada para a população está rodeada de mato alto. O prefeito já espera pela retomada do serviço junto à companhia. “Foi a minha administração que conseguiu este acordo com a Sabesp para colocar as duas caixas d’água lá. Água para beber e cozinhar. Temos dado a atenção possível, dentro da situação. Sempre fazemos a manutenção, mas dentro do que é regular. É como a parte elétrica. A gestão passada colocou energia lá, mesmo com uma sentença que proibia a colocação de água e energia em 2008. Não sei como a antiga gestão colocou. Foi ótimo para a população. Aí, como já tinha essa energia, a minha gestão somente colocou os braços de luz para melhorar”.
Questionado se existe um plano B, o prefeito foi enfático. “Não existe um plano B. Aquilo (terrenos) tem um dono. A Prefeitura tomou a decisão de desapropriar por interesse social, para atendermos essas famílias, mas precisamos aguardar a decisão judicial. Temos que agir corretamente”.
A espera de uma decisão, crianças, adultos e idosos seguem no dia a dia de quem luta para não ser esquecidos.
Luta com nocautes diários, como da vendedora Célia Maria de Freitas, 61 anos, que está em tratamento médico contra um tumor cerebral e sonha em ter um lugar melhor. “Estamos morando na área invadida, porque simplesmente não temos para onde ir”.