Reportagem especial – Fantasmas nas ruas do Vale
Drogas, violência, descaso, preconceito… São vário os obstáculos no dia a dia de quem luta para sobreviver nas ruas
Rafaela Lourenço
Jéssica Dias
Francisco Assis
O tempo cada vez mais escasso de quem passa e a falta de empatia transformam pessoas que moram nas ruas em fantasmas, seres invisíveis e imperceptíveis no cotidiano. Pessoas que lutam contra vícios, fome, frio, medo, violência e o esquecimento da sociedade e do poder público. Com exceções, os municípios da região enfrentam dificuldades para atender à população de rua, cada vez mais crescente, cada vez mais negligenciada.
Hoje, o termo “moradores de rua” não é mais utilizado. Agora, são chamados de “pessoas em situação de rua”. Mas o que eles mais esperam é que a mudança vá muito além de vocábulos na forma de tratamento.
Em meio às duas das principais capitais brasileiras, o Vale do Paraíba se transforma em destino comum para andarilhos que, somados a quem já mora nas ruas e dependentes químicos, procuram abrigo. O fácil acesso às drogas aumentam o risco para os desabrigados (entre usuários e não usuários) e para quem convive com essa realidade. “Eles ficam ali, ó. Dá até medo de passar”, apontou uma pedestre, em direção à praça Conde Moreira Lima, a Praça da Biblioteca, no Centro de Lorena. “Tem que tomar cuidado viu”, completou.
O local, que além da Biblioteca Municipal, conta com a Santa Casa e um dos principais pontos de ônibus da cidade, é uma das concentrações de moradores de rua em Lorena. Eles dividem espaços sob quiosques durante a noite. Em dias frios, dormem um ao lado do outro. “A gente se esquenta”, contou Carlos Gomes da Silva, um homem de 49 anos, nascido em Aparecida. Ele é só uma das figuras que se pode encontrar diariamente na praça.
Conhecido como “Índio”, contou que tem filho e uma ex-mulher, mas que não os vê há décadas. “Separei dela com vinte anos. Meu filho é policial e tem quase vinte anos que estou assim. Mas direto na rua mesmo, desde os 36”, lembrou, misturando palavras encontradas em meio a pensamentos perdidos no banco da praça.
Como Carlos, outras pessoas passam o dia pedindo ajuda e esperando voluntários, que entregam comida e roupas. “A gente tenta proceder nossa vida, porque a gente é ser humano. Tem um monte de família que está nas ruas. Tem gente que ajuda, tem gente que ama a gente, traz comida, traz pão, suco, mas outros tem medo. Nós não somos bicho, não queremos fazer mal”.
A ajuda, citada por Índio, vem de ações voluntárias, como a do grupo “Irmão de Rua – Amor e Ação”. “A gente conta com um pessoal, umas nove pessoas, cada uma com sua função. Ajudamos com doações de roupas, calçados produtos de higiene pessoal e alimento”, contou a funcionária pública Luciana Sartori.
Entidades como o Emaús, de Cachoeira Paulista chegam a auxiliar o grupo, assim como um empresário de Lorena. “Eles (Emaús) nos ajudaram com o bazar, doando roupas, cobertor e colchão. Quando tem vaga lá, a gente leva alguém. Temos ajuda também de empresários, como o dono da padaria São José, que nos doa pão e do Sacolão da Economia”, comemorou Luciana, que contabiliza entre 25 e 30 pessoas atendidas à cada visita.
Elder, um homem de 60 anos, que deixou às ruas e o álcool depois de conhecer o “Irmão de Rua – Amor e Ação”, é um dos exemplos dados pela voluntária. “São várias histórias. Eles pedem ajuda, atenção. Alguns vencem, como o seu Elder, mas outros não. Tem uma jovem, que estava grávida. Nós a ajudamos, a levamos para a família, mas depois do parto, ela entregou o bebê para a mãe e voltou às ruas”, lamentou Luciana, que espera contar com maior apoio para o trabalho. “A gente precisa de doações e de pessoas que queiram nos ajudar também a atender, a levar as doações”.
Na última década, o Ministério do Desenvolvimento Social realizou uma pesquisa nacional sobre a População em Situação de Rua. O levantamento apontou os motivos que levam as pessoas a morar nas ruas. De acordo com o Ministério, o alcoolismo e/ou uso de drogas, com 35,5%, é o principal motivador da situação no país, seguido pelo desemprego (29,8%) e conflitos familiares (29,1%). Das 31.922 pessoas entrevistadas, 71,3% citaram ao menos um dos três motivos, mas há casos em que os três itens se misturam.
Na região – De acordo com levantamento da Assistência Social, Lorena possui cerca de trinta pessoas nesta situação, sendo 14 moradores fixos e 16 migrantes que estão de passagem pela cidade. Entre eles, 24 homens e 6 mulheres. No total, 25 seriam usuários de drogas. Em 2017, foram realizadas 1.552 abordagens a essas pessoas.
O município conta apenas com os serviços do Creas (Centros de Referência Especializados de Assistência Social) que faz a busca ativa nos bairros, o auxílio para retirada de documentação, passagem de ônibus para cidades próximas, cadastros para benefícios como aposentadoria e o atendimento de saúde. A Casa da Acolhida, que oferecia banho, café, almoço e local para dormir, teve o contrato encerrado em dezembro por questões documentais, incluindo prestações de contas.
De acordo com a subsecretária de Assistência Social e coordenadora do Creas, Rita de Cássia Ribeiro, as ações para implantar uma nova Casa de Acolhida estão bem caminhadas. “Existe todo um trâmite da Prefeitura, que estabeleceu um processo de colaboração com uma entidade e requer um caminho, que já está sendo percorrido. A previsão do retorno é até abril”, revelou.
O trabalho para tirar as pessoas das ruas tem um adversário grande na cidade; as drogas. O chefe do setor de Desenvolvimento Social da população em situação de rua, Daniel dos Santos, responsável pelas buscas ativas no município, contou que há 35 pontos de usuários de drogas. São áreas de movimento, como o espaço da rodoviária, onde eles vigiam carros para conseguir dinheiro (o local tem registros de assaltos, além da abordagem a pedestres e usuários do terminal). “O respeito é acima de tudo. Se ele (morador de rua) quiser, vamos fazer de tudo hoje. Se ele não quiser, amanhã a gente volta e oferece novamente a ajuda”, destacou Santos.
Os atendidos podem ser encaminhados para o Caps (Centro de Atenção Psicossocial) ou ainda para entidades como o Monte Sinai, conveniado à Prefeitura, com cerca de 12 vagas. “Lá, eles passam por uma bateria de exames, recebem medicamentos e praticam atividades culturais e religiosas”.
Além de Lorena, outras cidades tentam atender pessoas que passam os dias nas calçadas, mas encontram barreiras. Foco de milhões de turistas por ano, Aparecida enfrenta também problemas diários com o número de pedintes na região próxima ao Santuário Nacional, que aumenta durante os finais de semana.
No município, o Creas faz o atendimento de moradores de rua. Já andarilhos que chegam à cidade podem ser acolhidos pela “Casa de Passagem”, um albergue, que recebe cerca de trinta pessoas por dia, com pernoite, alimentação, banho, contato com familiares e cidade de origem. O serviço mais procurado é a higienização e a alimentação com café da manhã, almoço, café da tarde e jantar.
Simone Oliveira é coordenadora da Casa e contou que a situação se agrava no segundo semestre, com a aproximação do dia 12 de outubro, dia da Padroeira do Brasil. Somente em 2017, a Casa teria recebido cerca de 3,9 mil pessoas. Em média, cerca de trezentos andarilhos passam mensalmente por Aparecida.
Já número de moradores de rua, segundo Simone, não chega a vinte. “Cada uma dessas pessoas traz uma necessidade especifica, como acolhimento, alimentação, higienização, encaminhamento para a rede de assistência e passagem”, contou.
Assim como Aparecida, Cachoeira Paulista também recebe um grande número de turistas, o que atrai pedintes. Segundo a diretora do Departamento de Proteção Básica de Cachoeira Paulista, Adila Marlene Faria, no ano passado, o Cras (Centro de Referência de Assistência Social) conseguiu encaminhar 11 pessoas para suas cidades de origem. “A maioria que passa por aqui não tem desejo de voltar para a família. A gente registra a passagem, mas não são obrigados a fazer nada, é o direito de ir e vir”.
Adila contou que a assistência tenta conscientizar moradores e turistas para evitar as esmolas. “Eles conseguem um real de um, de outro, porque as pessoas sempre ajudam. Tivemos até uma denúncia de um andarilho que colocava R$ 120 de crédito no celular, de dois em dois dias”.
Quando o morador de rua precisa de assistência, o Cras o encaminha para projetos como o Emaús ou o Bom Samaritano, entidade católica ligada à comunidade Canção Nova, que oferece alimentação, banho e roupa. “Já tivemos caso de uma pessoa que estava na Cracolândia durante cinco anos e acabou aparecendo aqui na nossa cidade. Fizemos contato com o Espirito Santo, de onde ele era. A alegria da família foi imensa em saber que o filho ainda estava vivo”, comemorou Adila.
Em Guaratinguetá, a Prefeitura tem encaminhado o trabalho para organizar o atendimento. O Creas fechou um levantamento em março com atendimentos de pessoas com situação de rua. Atualmente, são 28 homens e 9 mulheres fixos na cidade. Outras 79 pessoas são migrantes (74 homens e 5 mulheres), que recebem a passagem para que retornem ao município de origem.
O Centro desenvolve um trabalho de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, oferecendo café da manhã, higiene pessoal, almoço, auxílio na manutenção dos documentos através de triagem e a inscrição no CadÚnico (plataforma de cadastro para assistência social). As pessoas que correspondem aos requisitos são inscritas em conjuntos habitacionais.
O município também conta com o acolhimento em casas terapêuticas em Guaratinguetá, Lorena e Cachoeira Paulista e tem o acompanhamento de psicóloga e assistentes sociais, com reuniões socioeducativas e encaminhamentos para outras áreas como educação, saúde e trabalho.
De acordo com o secretário de Assistência Social, Arilson Santos, vinte moradores de rua foram inseridos no programa Frente de Trabalho no final do ano. Em janeiro, o registro caiu para 13 pessoas. O último levantamento feito em março revelou que somente sete permanecem trabalhando nos serviços de rua.
O trabalho de abordagem social noturna, que estava paralisado, foi retomado neste mês e ampliado para outros horários. A ação é feita a cada dois dias, em pontos e horários estratégicos. A cidade estuda a criação de plantões com vans da Assistencial Social na região central, onde há o maior número de reclamações quanto à pedintes, um dos motivos para a aplicação do serviço. De acordo com o secretário, há casos de flanelinhas, que chegam a atacar veículos de motoristas que se recusam a dar dinheiro.
Outro investimento no setor é a construção do “Centro Pop”, na antiga sede da secretaria de Assistência Social, na rua Gama Rodrigues. Um espaço que deve reunir o trabalho assistencial na cidade. “Já existe o projeto junto à Codesg que está fazendo o levantamento, parte da verba disponibilizada e tão logo possível a gente vai dar início à reforma desse prédio que terá todos os atendimentos (assistência, cursos e oficinas de capacitação) hoje feitos no Creas”.
Reestruturação – Em entrevista ao programa Atos no Rádio, o prefeito de Cruzeiro, Thales Gabriel Fonseca (SD), afirmou que a maioria dos moradores de rua migrou de outras cidades. Eles utilizam os prédios abandonados para dormir, como os da Rua 2, além de praças, como a Nove de Junho, onde ficam o prédio da Prefeitura e o colégio Arnolfo Azevedo.
A administração municipal procura parceria com a iniciativa privada para a criação de uma casa de passagem. “A ideia é saber de qual cidade ele é, se é dependente químico, se há vínculo com a família e qual encaminhamento pode ser feito. Se não for de Cruzeiro, ele passará por essa casa de passagem para tomar banho, receber alimentação, uma nova vestimenta e providenciar uma passagem”, frisou Fonseca.
A Prefeitura não soube precisar os dados da assistência a moradores de rua.
Em Pindamonhangaba, a secretaria de Assistência Social também não conseguiu detalhar os números do atendimento aos moradores de rua. De acordo com a Prefeitura é difícil estimar um número porque os dados são dinâmicos.
Quem busca ajuda do Cras recebe acolhimento. Lá, são direcionados para instituições como casas de acolhimento. A cidade conta ainda com o projeto de abrigo noturno, iniciado em agosto de 2017. O local funciona no bairro São Benedito, com capacidade para vinte pessoas.
A busca por um destino
Por toda região, entidades, voluntários e o poder pública tentam ao menos tornar menor a aflição de quem não tem um teto. Ex-morador de rua, Lucas César da Costa, 32 anos, já foi usuário de drogas, mas hoje é um dos vários braços que se esforçam para tornar visível quem foi transformado em estatística.
Nas ruas do Vale do Paraíba, Lucas e amigos do projeto Nova Canaã, uma ação de uma igreja evangélica, sediada em Cunha, vendem bombons para arrecadar dinheiro e dar condições à instituição para estruturar e atender cada vez mais pessoas. “A gente acolhe sem fazer distinção e sem fazer diferença entre um e outro. Se a pessoa pede nossa ajuda, a gente acolhe, independentemente da situação. Só que agora, por causa da Vigilância Sanitária, acabaram barrando a gente”, contou o jovem sorridente, com uma cesta de bombons na mão, enquanto aborda pedestres no Centro de Lorena. A entidade, que conta com 12 pessoas e capacidade de até 18 assistidos, tem dois anos e aguarda o alvará de funcionamento para manter a assistência.
Mesmo com propostas de tantos voluntários e ações do poder público, basta um olhar para as calçadas para flagrar vidas esquecidas. Histórias que se confundem entre a realidade e sonhos, quase sempre simples, como voltar pra casa ou ainda ser bem recebido pela família. Casos como o de Edilson Valadão, 47 anos, dois deles em situação de rua. “Eu trabalhava na Prefeitura do Rio, fui demitido, entrei no vício do álcool e outras coisas mais. Minha família não me aceitou e em vez de me acolherem, me internar em algum lugar, me largaram na rua”.
Valadão disse que estava internado no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na capital, seus documentos e pertences teriam sido roubados. Ele contou que no hospital, a assistência social entrou em contato com seu irmão. “Ele bateu o telefone na cara da assistente social. Ele tem uma situação boa lá no Rio e eu estou aqui, pulando de cidade em cidade, mas ninguém ajuda ninguém”.
O “aqui” em março, era Lorena. O carioca estava na cidade há oito dias. Sob o sol, fica pela praça Arnolfo Azevedo. A noite, procura o Pronto Socorro, em busca de movimento e de uma televisão. Lá, fica até às 6h, antes de voltar pra rua.
À reportagem, ele contou sua história com um ar de quem já não espera ser entendido. Deixa claro que já se acostumou com olhares de dúvidas e descrédito. “Eu passei mal na rua. Se eu tivesse que morrer no calçadão, eu morria, porque demoraram quase quatro horas pra me socorrer. Em Aparecida, me roubaram de novo, quando eu dormia na calçada. Levaram minha bolsa”.
Como muitos, Valadão disse que só sonha em voltar para sua cidade. “Só queria ajuda pra ir. Nem que fosse pra me jogar embora para o Rio. Parece que o ser humano é bicho hoje em dia”.