Vereadores de Cachoeira intimidam médico por período de descanso em plantão de 36 horas contra Covid
Felipe Piscina e Max acusaram plantonista de negar atendimento; profissional vinha de tentativa frustrada, de quase duas horas, de reanimação em paciente
Thales Siqueira
Francisco Assis
Cachoeira Paulista
Um vídeo postado nas redes sociais tomou conta das discussões nesta quinta-feira (25), em Cachoeira Paulista. Durante um plantão de 36 horas, o médico Rodrigo Coragem foi abordado, na sala de descanso para plantonistas da Santa Casa de Misericórdia, pelos vereadores Felipe Piscina (DEM) e Max (DEM). A dupla acusou Coragem de deixar pacientes à espera de atendimento.
O caso foi registrado na noite da última quarta-feira (24), logo após a realização de uma sessão extraordinária na Câmara, onde Piscina garante ter recebido uma série de reclamações sobre a demora nos serviços do hospital. “Recebi uma série de ligações de munícipes que estavam lá (Santa Casa), já faziam um tempo por causa da demora no atendimento. Na sessão, recebi mais reclamações, e disseram que o médico estava dormindo”, contou o vereador.
Acompanhado de Max (que filmava a cena por um celular), ele foi até à Santa Casa e encontrou o médico deitado sem camisa e descalço. No vídeo, que viralizou nas redes sociais, Piscina invade a sala e conta que iria acionar o prefeito Antônio Carlos Mineiro (MDB) e o vice Dr. Ailton Vieira (PTB), para se pronunciarem sobre o episódio.
Abordado, o médico tentou contar aos parlamentares que estava descansando, mas Piscina continuou o repreendendo.
“Eu estava descansando”, argumentou o médico.
“Não interessa! Em plena pandemia? O que está fazendo dormindo? O senhor assistiu filme até as quatro horas da manhã?”, questionou Piscina.
Ao ver Coragem se virar para colocar os sapatos, o vereador rasgou uma ficha com dados do atendimento, entregue a ele por pacientes, e jogou em direção ao médico. A discussão continuou, com Piscina e Max, intimidando o profissional, que não conseguiu explicar o caso e desistiu de argumentar. “Pode continuar seu discurso”.
O vídeo, que tem duração de pouco mais de três minutos, foi postado por Piscina. Com mais de quinhentos comentários antes que fosse retirado do perfil do vereador, a publicação recebeu comentários diversos, com a maior parte deles em críticas à abordagem. “O descanso médico é garantido por lei. Foi eleito pra fazer teatro e espetáculo? Que vergonha”, postou uma internauta, questionando o vereador.
O médico plantonista foi procurado pela reportagem do Jornal Atos e negou falhas no atendimento. “Em momento nenhum a população ficou desassistida. Estamos no momento mais difícil, ressaltando que estamos com três profissionais de Cachoeira, da nossa grade plantão, com Covid. Então, a gente está trabalhando para não deixar a população desassistida, para poder tentar dar o melhor suporte para todos que todo mundo sabe que não tem vaga de UTI. A gente está fazendo o que pode”.
Em entrevista ao portal G1 do Grupo Globo, ele contou que pouco antes da abordagem, havia passado uma hora e quarenta minutos tentando reanimar um paciente de 44 anos, que não resistiu e morreu, vítima de Covid-19. Coragem teve ainda que atender a família do paciente para comunicar o falecimento. Em seguida, decidiu descansar. “Eu levantei correndo quando ouvi esmurrarem a porta, porque achei que alguém estava morrendo. No meio de uma pandemia, sendo levados ao limite, a gente ainda tem que ver cenas como essa”, lamentou. “Aquelas pessoas (Piscina e Max) não sabiam pelo que nós estávamos passando, vendo paciente morrer por falta de UTI. Fazer o que pode sem estrutura”.
No dia seguinte à postagem, o prefeito e o secretário de Saúde, Gabriel Tadeu Rodrigues, participaram de um ato de apoio aos profissionais da saúde. Mineiro pediu respeito à classe que está na linha de frente do trabalho contra a Covid-19. “Todo o secretariado, toda a nossa equipe está empenhada na Saúde para mostrar apoio aos profissionais que estão enfrentando essa crise muito séria na saúde. A gente está com muita responsabilidade para fazer isso funcionar, para não se agravar mais, e a população ter o atendimento”, frisou.
A Santa Casa emitiu uma nota de repúdio nas redes sociais afirmando que a ação dos dois vereadores teve como objetivo único constranger o médico em seu local de trabalho e no seu direito ao descanso. “Em momento que a atividade médica se torna ainda mais fundamental, é inaceitável qualquer forma de desrespeito à categoria que está mais exposta aos riscos de contrair a Covid-19”, exaltou a assessoria em trecho do documento divulgado.
De acordo com a resolução Cremesp 90/2000, do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, todos os profissionais de saúde têm direito à boas condições de trabalho, incluindo área de repouso durante regime de 12/24 horas de plantão. A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) dispõe que qualquer trabalho contínuo que exceda seis horas de duração é obrigatório a concessão de intervalo de uma hora para repouso e alimentação.
O secretário de Saúde, que também é médico e tem trabalhado no combate à Covid-19, engrossou o discurso contra a ação de Max e Piscina. “Nós que saímos das nossas casas, deixamos nossas famílias, estamos dando o máximo, estamos no limite para poder atender bem a população, pedimos respeito à nossa classe de profissionais de saúde. Médicos, dentistas, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, estamos doando parte da nossa vida para ajudar os familiares de vocês (população)”, salientou Rodrigues.
Na tarde da quinta-feira, Piscina voltou às redes sociais. Desta vez, para pedir desculpas pela ação da noite anterior. “Fui até a Santa Casa e chegando lá, em momento algum, um funcionário veio me explicar o que estava acontecendo. Se algum deles me falasse que o médico estava cansado, que ele virou (a noite trabalhando), automaticamente eu iria embora. Jamais eu iria causar um transtorno tão grande quanto esse. Fui porque o povo me pediu. Quero pedir desculpas para o médico, sei que realmente errei pelo jeito que eu falei com ele e como entrei (na sala de descanso). Quero pedir desculpas aos cachoeirenses”.